Prof. Marcio Carneiro

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domingo, 20 de março de 2011

ARTES Miguel Ângelo Buonarroti

Introdução

"Ele predizia o futuro monumental aos informes montes de pedras e de traves que jaziam à nossa volta"

O grande florentino cuja obra tornou tão famosa a arte italiana foi Miguelangelo Buonarroti (1475-1564). Ainda jovem, Miguelangelo aprendeu todos os recursos técnicos do ofício, uma técnica sólida de pintura de afrescos e o completo domínio da arte de desenhar. Também fez suas próprias pesquisas de anatomia humana, dissecou cadáveres e desenhou de modelos, até que a figura humana deixou de ter para ele quaisquer mistérios. Atitudes e ângulos que muitos grandes artistas anteriores hesitariam em introduzir em suas pinturas, com receio de não os reproduzirem de forma convincente, apenas estimulavam a sua ambição artística. Com trinta anos, ele era geralmente reconhecido como um dos mais notáveis mestres da época, igualando-se, à sua maneira, ao gênio de Leonardo. Em sua obra no teto da Capela Sistina, onde encenou toda a bíblia com sua arte, pintou homens e mulheres pujantes, em posturas de profunda meditação, lendo, escrevendo, discutindo ou como se estivessem escutando uma voz interior. Essas surpreendentes figuras exibem todo o domínio e mestria de Miguelangelo desenhando o corpo humano em qualquer posição e de qualquer ângulo. São jovens atletas com musculaturas maravilhosas, torcendo-se e voltando-se em todas as direções concebíveis, mas sem perderem nunca a elegância.

"O desenho sempre se torna muito mais fácil quando conhecemos os diversos instrumentos de trabalho e o emprego adequado dos mesmos. Os conhecimentos sobre desenho se resumem em técnica".



Michelangelo Buonarroti

No dia 6 de Março de 1475, despontava a madrugada na cidadezinha de Caprese, em casa do podestade da cidade, o senhor Lodovico Buonarroti, notável de Florença, nascia uma criança. Dotado de razoável fortuna, negociante hábil e honesto, gozando do respeito e da consideração dos seus concidadãos, Lodovico não podia prever o destino que esperava seu filho Michelangelo.

Nessa estrada que vai de Florença a Roma e que tantas vezes ele percorrerá durante uma vida cheia de viagens, de fugas e de regressos, entre a cidade radiosa da Toscana e a velha cidade que em breve sentirá os sortilégios da sua própria antigüidade.

Tinha 6 anos quando a mãe morreu e o pai decidiu levá-lo para Florença.

Lodovico Buonarroti manda-o para o Colégio de Francesco da Urbino, onde prisioneira entre as paredes sombrias, a criança sonha, indiferente à geometria e ao latim. Sonhos de ternura, céu, campo e pedra. Sonha vir a ser artista. O pai, depois de ameaças, ralhos e gritos, decide-se a metê-lo como aluno na oficina de Ghirlandajo. Sonhara com a pedra. Hei-lo no mundo mágico da cor, junto de um dos pintores mais famosos de Florença. Mas este sente-se decididamente pouco atraído pela pintura e não tarda a entrar para a oficina de escultura de Bertoldo. Hei-lo diante da pedra e do mármore. Inicia então um diálogo com a matéria que prosseguirá durante toda a sua vida.

Lourenço de Médicis, príncipe sem coroa de Florença, colecionador de obras de arte, a quem chamam o Magnífico, quisera que o ensino das artes plásticas na sua cidade tivesse as mesmas vantagens e gozasse das mesmas facilidades que o ensino das artes literárias. Michelangelo gosta da solidão. Falta-lhe esse bom humor que dizem habitual nos homens de belas-artes, e se é verdade que se exagerou o seu sentido trágico e da angústia, não deixa de ser um fato que a sua insociabilidade o isola consideravelmente.

Michelangelo, por seu potencial, não deixou de suscitar ódios e invejas. Um dos colegas de oficina, Torrigiani, provoca uma discussão e com um violento murro fratura-lhe o nariz, deixando-o desfigurado para o resto da vida. Foi um acidente que apenas contribuiu para tornar ainda mais selvagem este amante da beleza, prisioneiro da sua própria fealdade.

Lourenço instalara Michelangelo no palácio, e este encontra-se subitamente mergulhado na atmosfera mais livre, mais voluptuosa e intelectual de toda a cidade.

Cristaliza a sua emoção num baixo-relevo que se encontra atualmente na Casa Buonarroti, de Florença, e, regressando às fontes da tragédia grega, executa o Combate dos centauros e dos Lápitas, em que pressentimos já a violência muscular que marcará todas as suas composições.

Lourenço morre em 1492, com 44 anos. Michelangelo deixa então o palácio e regressa à casa paterna. Isolado no seu trabalho, interroga-se sobre o sentido da vida e da morte, sobre o valor do artista e a importância da obra de arte na vida e em face de Deus.

Entretanto, no palácio dos Médicis, o filho mais velho de Lourenço, Piero, não pensa senão em impor a sua vontade ao povo de Florença e tomar o poder. A dinastia dos Médicis, o seu brilho de mecenas e de entes de gosto, desmoronar-se-á com o seu reinado tirânico.

Quando, dois anos após a morte de Lourenço, em Janeiro de 1494, ele convida Michelangelo, este, que se cria já esquecido, não deixa de ficar admirado.

O rei da França, Carlos VIII, começa então a majestosa marcha dos combatentes em direção a Florença, Roma e Nápoles. Michelangelo abandona Florença, na primeira fuga de uma vida que tantas vezes o verá nas estradas em busca de uma serenidade impossível, e não fugindo, na verdade, senão de si mesmo, em busca de um outro ele próprio ideal.

Michelangelo resolve ir viver em Bolonha acompanhado pelos poucos amigos que o tinham já seguido até Veneza. Quando chegam, a sua qualidade de estrangeiros causa-lhes complicações com a justiça e a polícia locais, mas o acaso pôs no seu caminho Gianfranco Aldovrandi, apreciador de arte e espírito cultivado, para quem o nome de Michelangelo não é desconhecido. E hei-lo de novo com um protetor. Instala-se em sua casa e pode recomeçar a sonhar com o trabalho.

É-lhe enfim dada a oportunidade de se dedicar novamente ao trabalho, ou seja, de se encontrar de novo diante da pedra, do escopro e do martelo. Confiam-lhe o trabalho de terminar o santuário que contém os restos de São Domingos. Faltava executar as estátuas de São Petrônio e São Próculo e de um anjo – O Anjo do Candelabro.

Mas os artistas bolonheses vêem com maus olhos este estrangeiro que obtém as encomendas a que de boa vontade teriam concorrido. Chegam até ele as ameaças e até rumores de um possível assassínio. Para mais, começa a sentir dolorosamente o peso do exílio. Alguns dos Médicis, também eles refugiados em Bolonha, preparam-se para regressar ao seu antigo feudo e Michelangelo decide acompanhá-los.

Após a queda de Florença, os inimigos dos Médicis tinham-se unido e, sob o comando dos Pazzi, aproveitaram a ocasião para deixar estalar os seus ódios e invejas. O dominicano Jerônimo Savonarola instaurou um verdadeiro regime de inquisição. Às antigas orgias sucedem-se cenas de penitência, de flagelação, de humilhação em praça pública e de perseguição.

Michelangelo chega a Florença nesta estranha atmosfera em que as lamentações substituíram os sons das baladas e dos madrigais da ars nova. Este estado de exaltação em que Savonarola mantém os florentinos acaba por cansar o artista.

O Cardeal de San Giorgio, estupefato com a habilidade de Michelangelo ao executar a maravilhosa escultura do Cupido Adormecido, convida o artista a passar algum tempo em Roma.

O romano Jacopo Galli entra na vida de Michelangelo para desempenhar por sua vez o papel de mecenas. Michelangelo recomeça a trabalhar. Esculpe o Baco, destinado a ser colocado num jardim de antigüidade do rico banqueiro romano. Sente-se nesta obra, que é no entanto uma das primeiras de Michelangelo, a familiaridade que existia lá entre a mão e o instrumento, o à-vontade dos dedos no manejo do cinzel, que não arranca o mármore nem o talha, mas o modela, e poder-se-ia quase dizer o amassa. É desta longa habituação do instrumento e do conhecimento preciso da matéria que nasce a perfeição.

A capital espiritual está nas mãos de Rodrigo Bórgia, eleito papa em 1492 com o nome de Alexandre VI. O novo papa dá a Roma o exemplo da mais negra devassidão. Sua filha Lucrécia, de quem fez sua amante, tornou-se uma das mais célebres heroínas românticas. Quanto ao seu filho preferido, césar, ele não se limitou a assassinar o irmão; apaixonou-se perdidamente pela irmã, tornando-se rival do próprio pai. Alexandre VI, apreciador de festas e de divertimentos, depressa se tornou alvo de Savonarola, que em Florença continuava as suas sombrias pregações, lançando agora a maldição sobre o próprio Vaticano.

Alexandre VI não perdoará. De um dia para o outro, a fortuna de Savonarola desmorona-se e é entregue à tortura após ser excomungado por Alexandre VI. Savonarola confessa tudo o que querem, o que equivale a assinar a sua condenação à morte.

No dia 23 de Maio de 1498, Savonarola é enforcado publicamente e o seu corpo é queimado, no mesmo local em que tinha feito destruir tudo o que, segundo o seu sentido de virtude, atentava à pureza da alma, do espírito e do corpo.

Florença tornar-se-á novamente possível se viver, no sol esquecido e na paz do espírito reconciliado com o espírito. Entretanto, em Roma, Michelangelo acaba de obter, graças a Jacopo Galli, a encomenda da Pietá destinada à capela dos reis de França, em São Pedro, que fará dele o escultor mais célebre da Itália.

Para executar sua obra, Michelangelo foi a Carrara a fim de escolher ele mesmo o mármore, e no próprio local esboça já a forma piramidal que dará à estátua.

Com a sua Pietá, Michelangelo marca um momento decisivo da escultura italiana. Ligada ainda ao Quattrocento pelo estilo dos panejamentos, ela inaugura uma nova era pela ousadia da composição e as qualidades soberanas de uma técnica que atingiu a maturidade. O corpo de Cristo já não é um cadáver rígido, um homem reduzido à morte, como que com doçura e confiança. É ao mesmo tempo o filho que voltou para sua mãe, para um último refúgio.

Terminada a Pietá, Michelangelo põe-se a pensar em Florença com mais intensidade e melancolia. Regressa como triunfador, pois a sua fama precedeu-o nesse momento todos os florentinos observam apaixonadamente a rivalidade existente entre dois artistas, Leonardo da Vinci e Andrea Sansovino. Ambos disputam a honra de esculpir um bloco de mármore já esboçado por Agostino di Duccio e abandonado em seguida. É a Michelangelo que caberá o trabalho de acabar o Gigante. Do bloco selvagem libertará David.

A sede de triunfo que o David irradia é a do próprio Michelangelo, cristalizada na sua obra. Essa energia latente que faz dilatar os músculos e incha as veias é a sua própria energia. Em todo o caso, nunca uma obra causara tanto assombro e admiração aos florentinos.

Em Janeiro de 1504 reuniu-se uma comissão, constituída entre outros por Leonardo da Vinci, Botticelli e Andrea Sansovino, a fim de decidir o lugar da colocação do gigante de quatro metros. Decidiram deslocar a Judite, de Donatello, que se encontrava diante da Senhoria e substituí-la pelo David. Foram necessários quarenta homens para transportar a estátua e cinco dias de esforços para a levar até ao local destinado.

Florença tinha nesse momento, no coração da sua elite artística, um mestre incontestado e incontestável em que Michelangelo não queria ver senão um temível rival: Leonardo da Vinci.

Ele tinha 52 anos quando assistiu à solene consagração do David e do seu autor, Michelangelo, que tinha nesse momento 29. É então que vão poder medir os seus talentos e até os seus gênios, e confrontar as suas ciências do movimento e da anatomia. Tudo isto se passa por ocasião da decoração da Sala do Conselho do Palácio Municipal de Florença.

A Leonardo coube a tarefa de evocar a Batalha de Anghiari, travada em 1440 entre as tropas florentinas de Giampaolo d’Orsini e o exército do milanês Niccolo Piccinimo.

A Michelangelo coube representar o episódio da vitória dos florentinos sobre os pisanos na Batalha de Cascine.

Nenhuma das duas obras, nem a de Anghiari nem a de Cascine, chegou até nós, pelo menos levada a uma completa realização. Leonardo, como pesquisador infatigável, quis experimentar na cor processos técnicos que tiveram como único resultado destruir a cena assim que foi acabada. Michelangelo, esse não chegou à execução definitiva e realizou apenas o cartão, atualmente perdido. Não podemos, portanto, avaliar esse combate entre os dois gigantes da Renascença, a não ser pelos desenhos e cópias que deles subsistem, especialmente os de Rafael, que neles se inspirou quando teve de decorar as câmaras do Vaticano.

A colaboração dos dois artistas não se passou sem choques. Michelangelo, de natureza desconfiada e irritável, caiu mesmo francamente na indelicadeza nas suas relações com Leonardo, em quem não podia deixar de ver um rival odioso. Travou-se realmente entre eles uma batalha, a que se chamou mais tarde a "guerra dos cartões", e esta guerra teve a maior repercussão no mundo artístico florentino e fora dele. Benvenuto Cellini disse das duas obras que elas foram a escola do mundo. De Rafael a Alonso Berruguete, os artistas vieram admirar aquilo que contribuiu não só para a glória de Leonardo e de Michelangelo, mas também para a de Florença. Michelangelo foi o grande vencedor desta competição.

No início do ano de 1504, Agnolo Doni encomenda a Michelangelo um quadro de tema religioso. Michelangelo escolhe a forma do tondo, espécie de painel redondo, e inspira-se na Virgem e o Menino, de Signorelli, que se encontra nos Ofícios de Florença, optando por este formato bem pouco vulgar. Pinta a Sagrada Família.

Temos neste quadro a primeira pintura a têmpera que Michelangelo executou e já então se nota no vigor dos corpos, cujas contorções evocam espirais flexíveis, na cor que os modela, tal como a luz modela os planos da pedra e do mármore, na firmeza do desenho, que acentua mais ainda a arquitetura sólida da composição, e também na presença desses adolescentes que ocupam o plano de fundo, uma prefiguração dos afrescos da Sistina.

Enquanto Florença se organiza na sua liberdade reencontrada e Michelangelo trabalhava na serenidade da atmosfera toscana, Roma via extinguir-se o seu chefe espiritual, o papa Paulo III, e suceder-lhe um homem cuja energia, força de vontade e cóleras famosas não tardariam a decidir em grande parte o destino de Michelangelo.

Della Rovere, impaciente por reinar entre os Estados Pontifícios e daí sobre a Itália, acedia finalmente ao papado, tomando o nome de Júlio II. Ambicioso, desprovido de escrúpulos quando precisava de atingir os seus fins, alma de ferro num corpo já atacado pela velhice, tinha enormes ambições.

Júlio II tinha grandes projetos, entre eles o de mandar fazer, antes do seu desaparecimento, um túmulo majestoso que, colocado no centro de Roma, fixaria no mármore e na pedra, para a eternidade, a sua grandeza e a sua glória. Dirige-se, pois, ao seu arquiteto, Sangallo, a quem o projeto entusiasma.

Imaginam os edifícios mais grandiosos e, seguindo as recomendações de Sangallo, Júlio II recorre ao homem cujo vigor de trabalho e de gênio se mostra capaz de responder à sua própria ambição: Michelangelo.

Em Março de 1505, Michelangelo chega ao Vaticano. Tem 30 anos. Nada o assusta, nada lhe parece irrealizável, nem mesmo os projetos insensatos de Júlio II.

Na imaginação dos dois homens elabora-se um monumento gigantesco. Um túmulo, sim, mas que vai condicionar tudo o que o cerca, que vai ver a Basílica de São Pedro apagar-se para dar lugar a um novo edifício digno de si, e a própria cidade abandonar as suas velhas pedras pela nobreza irradiante do mármore.

Parte então para Carrara, a fim de escolher os mármores que lhe convêm. Em Roma, Bramante, que sucedeu Sangallo na tarefa de reconstruir São Pedro, joga com a superstição do papa, persuadindo-o de que há uma falta de prudência evidente da sua parte no fato de mandar construir um túmulo ... para um vivo! É realmente tentar o destino.

Deixando-se convencer, Júlio II renuncia – de momento – ao túmulo. Decide, sem aliás ter consultado Michelangelo, confiar-lhe a decoração do teto da Capela Sistina, que não passava então de uma vasta abóbada de azul onde cintilavam o ouro das estrelas que a ornamentavam.

Aqui é com cálices que se fazem capacetes e espadas,

O sangue de Cristo vende-se às mãos-cheias,

A cruz e os espinhos fazem lanças e escudos,

E no entanto a paciência de Cristo comove-se.



Ah! Que ele não venha mais para estas terras,

Pois o preço do seu sangue subiria até às estrelas,

Visto que em Roma vendem a própria pele,

E que a via do bem aí está fechada!



Se por acaso eu quisesse perder a minha fortuna,

Seria bem aqui onde me privam da minha obra,

Onde o casaco age como medusa sobre o Mouro.



Mas se no alto dos Céus a pobreza é estimada,

Qual será o grande conforto do nosso estado,

Se for preciso um sinal para abrir a outra vida.

Michelangelo, indignado pela interrupção do túmulo de Júlio II.



Abandona imediatamente as encomendas que lhe fizeram, entre elas o São Mateus, mal se destacando do bloco sólido, a face apresenta-se de perfil, e ao vê-lo não podemos deixar de pensar na máscara dos faunos antigos. O seu corpo é o de um lutador vencido pelo esforço. Contrariado, Michelangelo aceita a encomenda do papa.

Michelangelo afirmou sempre que não era pintor e que para ele só existia uma arte, a escultura. Então vão impor-lhe uma obra pintada e de dimensões gigantescas, difíceis de executar. Os seus inimigos pensam fazê-lo soçobrar e perder o prestígio que lhe tinha valido o David, a Virgem de Bruges, a Pietá, e até o cartão da Batalha de Cascine e o tondo Doni, que poderiam ser, afinal de contas, apenas produtos de um feliz acaso.

Júlio II chama Michelangelo e põe-no diante da tarefa que dele exige: pintar a abóbada da Capela Sistina. Quarenta metros de comprimento. Catorze de largura.

A 10 de Maio de 1508, Michelangelo inicia esse trabalho de demiurgo que duraria nada menos de quatro anos. Hei-lo só nesse céu vazio, no alto dos andaimes. Despediu os ajudantes que lhe tinham dado e começou essa infinita meditação de onde sairá uma nova criação do Mundo. Das trevas ele fará brotar um universo ao mesmo tempo humano e sobre-humano. Foi-lhe necessário começar a estudar o afresco, reencontrar as técnicas aprendidas na oficina de Ghirlandajo. Dessa breve aprendizagem da juventude resta tão pouco que as primeiras figuras desenhadas depressa desaparecem sob uma camada de bolor, revelando-se um total malogro técnico. Michelangelo atravessa uma crise de desespero, mas volta de novo ao trabalho. Dia após dia verá o seu sonho realizar-se.

Desenvolve na abóbada da Capela Sistina as imagens que os longos capítulos do Antigo Testamento lhe inspiram, desde a Criação ao Dilúvio e ao ressurgimento da Humanidade através da personagem Noé. Enquadrando as cenas do Gênesis, encontram-se as sibilas, os profetas e esses atletas nus e soberbos que se tornaram célebres sob o nome de ignudi.

Até Maio de 1509 Michelangelo prepara cartões, pensa a abóbada, amontoa projetos. Em setembro desse mesmo ano, a primeira parte está terminada. Compreende ela: A Embriaguez de Noé, o Dilúvio, o Sacrifício de Noé e, dos lados: Zacarias, Joel, a Sibila de Delfos, Isaías, a Sibila Ertreia, David, Judite, os triângulos antepassados e os ignudi correspondentes.

Em setembro de 1510, a segunda parte é terminada por sua vez, com o Pecado Original, a Criação de Eva, Ezequiel, a Sibila de Cumes e também os ignudi.

Finalmente, em agosto de 1511, é terminada a terceira parte: as quatro últimas histórias, Daniel, a Sibila da Pérsia, a Sibila da Líbia, Jeremias, Jonas, os ignudi, e nos triângulos, além dos antepassados, o Suplício de Amã e a Serpente de Bronze.

Quanto à estrutura em trompe l’oeil, ela divide a abóbada e o espaço em três partes. A primeira compreende os triângulos e os óculos, a segunda abriga os profetas, as sibilas e os ignudi e, finalmente, a terceira é reservada às grandes cenas.

Este sonho tumultuoso revela o ideal de beleza de Michelangelo. Homens e mulheres confundem-se num único tipo físico, uma espécie de fenômeno que tem a força muscular do homem e a graciosidade de atitudes e de gestos de mulher.

Fisicamente desfavorecido, Michelangelo procura um refúgio na arte. Apaixonado pela beleza, não podia deixar de sentir da forma mais cruel a sua própria fealdade. Incapaz de a ignorar, dota as suas personagens com traços que idealizara para si, tornando-se deste modo o criador dessa beleza de que tinha sido privado. Desajeitado em face do amor, confessa-o na sua obra. Transpõe os seus sentimentos e dá aos seres que cria os traços que traduzem melhor o tipo ideal que imaginou.

Michelangelo vive no meio dessas crianças ideais e na solidão da sua alma. Durante todo o tempo que vai durar a execução da obra na Capela Sistina não se evadirá delas e encontra-se tão esgotado pelo esforço físico a que é obrigado que em breve não conseguirá ler sem ser deitado ou pegando no livro com o braço estendido e mantendo-o acima da cabeça de modo a vê-lo de baixo, pois se transformou numa espécie de ser torcido e desconjuntado perdido para toda a luz que não seja a que faz vibrar com os seus pincéis.

"Eu não sou pintor", repete a Júlio II, que veio examinar sem indulgência o avanço dos trabalhos. Continua a discutir com ele. Continua a reclamar-lhe paz do alto dos seus andaimes, que são instrumentos do seu suplício físico e moral.

Da Embriaguez de Noé à Criação, a progressão é constante e a ascensão torna-se sensível. Michelangelo impregna-se do espírito da Bíblia.

A Criação do Homem, que é, com justiça, a mais célebre de todas as cenas do Gênesis. Deus, sustentado pelos anjos e elevado num céu de luz, estende a mão direita ao encontro da de Adão, que, deitado, volta para ele um olhar de uma inexprimível profundidade. Dos dois indicadores aproximados parece brotar a centelha de vida que dará origem a toda a Humanidade.

A Criação do Homem é um momento de Michelangelo. Um momento do homem. Um momento de Deus. As três últimas cenas são igualmente inspiradas no Gênesis: a Separação da Terra e das Águas, a Criação do Sol, da Lua e das Plantas e a Separação da Luz e das Trevas.

Com um gesto que ignoramos se está mais próximo da bênção que da maldição, na primeira cena Deus debruça-se sobre o Mundo em formação, e nessa primeira Sagração da Primavera reúne os mares e oceanos, faz surgir os continentes ainda e escorrer e brotar os rios da sua superfície.

A cena final é também cronologicamente a última que Michelangelo pintou. Representa uma espécie de sarabanda insensata, saída das procissões delirantes de uma antiguidade entregue aos encantos de Dioniso. Deus parece arrastado no turbilhão do seu próprio poder, feiticeiro único que a feitiçaria toca por sua vez.

Resta-nos ainda evocar o esplendor das figuras decorativas intercaladas e a zona inferior da abóbada, constituída pelos óculos e pelos triângulos. Nas primeiras, Michelangelo representou os Antepassados de Cristo, os acontecimentos históricos, entre eles os de David e Golias, Judite e Holofernes, Ester e Assuero, o Suplício de Amã e a Serpente de Bronze. Todas estas cenas são vistas pelo prisma da vida de todos os dias, e não sob o ângulo da tragédia ou da circunstância heróica.

E eis que em Outubro de 1512 os andaimes são retirados. O teto da Sistina aparece ao seu autor e a Júlio II em toda a sua incrível grandeza. Envia então a João de Pistoia este soneto, onde, através do humor sarcástico, se sente o esgotamento físico em que essa luta gigantesca que durou quatro anos o precipitou:

A pensar assim eis-me com um bócio,

Como a água faz aos gatos na Lombardia,

Ou em qualquer outra região que se queira,

De tal modo que o ventre me aponta para o queixo!



A minha barba direge-se para o céu e a minha nuca, sinto-o,

Cai-me sobre a bossa, e tendo o tórax de uma harpia;

Quanto ao pincel que pinga constantemente,

Fez-me um rico empedramento na face.



Os lombos entraram-me na pança,

Em contrapeso fiz do meu cu uma proa,

E em vão agito os pés sem os ver.



À frente alonga-se-me a crosta

Que, franzindo-se, enruga-se atrás,

Eis-me tenso como um arco de Soria.



Michelangelo abandonou aí os seus pincéis e vinte anos se passarão antes de os retomar, novamente na Capela Sistina, para realizar essa outra visão do Mundo no seu declínio: o Juízo Final.

No dia 21 de Janeiro de 1513, Júlio II morre vencido pela velhice, esgotado pela doença e pela fadiga dos muitos empreendimentos perigosos que o levaram da negociação à guerra e da batalha à vitória. Morre à cabeça do exército que organizara para empreender uma marcha sobre Florença. Deixará a marca da sua personalidade tanto na história do Mundo como na história da Igreja. Em dez anos de pontificado – poder-se-ia dizer de reinado – desempenhou um papel particularmente considerável, intervindo nas guerras de Itália e concluindo tratados com o estrangeiro: com Luís XII, Maximiliano da Áustria e Fernando, o católico. Ao morrer aos 72 anos, deixa uma igreja consolidada nas suas posições, de novo senhora dos domínios que as flutuações do tempo lhe tinham feito perder e que ele reconquistara.

Morto Júlio II, a construção do túmulo passa a impor-se de maneira urgente. Júlio II não se esqueceu, aliás, de formular esta vontade no seu testamento, e encarregou o cardeal de Agen e o cardeal de Saint-Quattro de se ocuparem da sua execução. Poucas obras mergulharam Michelangelo em estado de entusiasmo e de exaltação, e quando, ao sair da Capela Sistina, se encontra finalmente no meio dos seus blocos de mármore, reintegrado a sua natureza de escultor, ele esquece a fadiga e recomeça a sonhar com formas, luz e sombra.

Michelangelo quer oferecer à memória do papa, que, apesar do seu caráter difícil e impiedoso, foi o seu melhor amigo e aquele de quem se sentiu mais próximo, este último testemunho digno da sua amizade e da grandeza dos seus gênios. Será para ele uma oportunidade de pensar novamente em termos de mármore e de pedra. Voltando a pegar no cinzel, reencontra a emoção. Esboça vários projetos.

Quando o cardeal de Médicis acende ao pontificado sob o nome de Leão X, os herdeiros de Júlio II fazem novamente apelo a Michelangelo, que trabalha na solidão da sua oficina perto do fórum de Trajano, no próprio coração da Antiguidade ressuscitada, e a 6 de Maio de 1513 é assinado um contrato. Escolhem um novo local: a Capela Sistina.

Michelangelo conservou as linhas gerais do primeiro projeto, mas introduz-lhe algumas modificações. Será ainda mais imponente, e, desta vez, ficará encostado à parede. O número de estátuas aumenta. Em 1516, novo contrato. Novo projeto. Do templo inicial nada resta. O monumento reduz-se a uma fachada com dois pisos e todo o seu significado muda. Em Outubro de 1526 elebora um projeto que não obtém qualquer êxito junto dos herdeiros de Júlio II e que está longe de acalmar a sua cólera. Aliás, tão insatisfeito como eles, não tardará também a abandoná-lo. Novo contrato em 1532 e quinto projeto. O túmulo será colocado na Igreja de San Pietro in Vincoli e deverá compreender, conforme as cláusulas, além das novidades, tudo o que já foi esculpido de 1505 a 1513, ou seja, desde que Michelangelo começou a executar o primeiro projeto. Mas só em 1545 as estátuas são finalmente colocadas.

Entretanto um novo papa, Paulo III, tinha encarregado o artista da execução do afresco do Juízo Final. E só o Moisés executado para o primeiro projeto entrará na realização do último, enquadrado pelas figuras de Raquel e de Lia (Fides e Caritas), enquanto na parte superior ficará a Virgem e o Menino, dominando o papa deitado num sarcófago, segundo a tradição.

Os escravos e as vitórias desapareceram; das personagens que tinham já sido executadas para o projeto de 1513, encontram-se atualmente no Louvre o Escravo Morimbundo e o Escravo Rebelde, onde foram parar depois de uma história aventurosa.

Tal como é, o túmulo de Júlio II ergue-se na Igreja de San Pietro in Vincoli segundo o último dos projetos do artista, dominado pelo esplendor de Moisés rodeado das figuras de Raquel (a Vida Contemplativa) e de Lia (a Vida Ativa). No centro do monumento ergue-se a Virgem e o Menino, dominando a imagem do papa estendido no sarcófago, tal como estava previsto. Nela se vê a alegoria da libertação da alma deixando o seu invólucro carnal. A única personagem verdadeiramente digna da grandeza de Júlio II, assim como das concepções geniais de Michelangelo, é o Moisés, cuja figura grandiosa deixa na sombra tudo o que o cerca e que se tornou célebre assim que foi exposto à admiração do público. Símbolo das Tábuas da lei e da Justiça, a figura de Moisés continua a erguer-se viva, apesar dos séculos. Em Michelangelo é o humanismo que ele encarna, tornando-se assim um novo reflexo do espírito da Renascença. Michelangelo, num querer fogoso e sobre-humano, identifica-se a Moisés como outrora se identificara a David. É o mesmo orgulho, o mesmo desprezo, a mesma vontade, que se lêem nos traços do majestoso e poderoso ancião e no rosto do jovem Gigante, igualmente vencedores.

O novo papa, Giovanni de Médicis, que reina com o nome de Leão X, é filho de Lourenço de Médicis. Michelangelo conheceu-o quando era protegido do Magnífico. Era apenas uma criança, mas desde muito novo fora iniciado por seu pai na via dos poderes eclesiásticos que haviam de o levar à consagração suprema, ao Pontificado. Leão X foi uma das personalidades mais importantes da Renascença Italiana, tanto do ponto de vista intelectual como do ponto de vista artístico ou religioso. Do ponto de vista religioso, o seu pontificado é marcado pelo nascimento da Reforma. Leão X tinha atraído sobre si o desprezo e o ódio de Martinho Lutero, regateando as indulgências.

O túmulo de Júlio II, neste momento, de que os seus herdeiros já não querem saber, fica inacabado.

Apesar de tudo, Leão X em breve pensará em Michelangelo, e, renovando o gesto de Júlio II, não é ao escultor que ele se dirige. Júlio II tinha feito de Michelangelo um pintor, Leão X fará dele um arquiteto. Arrancando o artista à sua solidão e ao seu colóquio com as estátuas do túmulo, envia-o a Florença para dar à Igreja de San Lorenzo uma fachada digna dela e da grandeza dos Médicis.

A 2 de Maio de 1517 escreve de Carrara a Domenico Buoninsegni: "... Sinto-me capaz de fazer para a fachada de San Lorenzo uma obra que seja o espelho da arquitetura e da escultura de toda a Itália ..."

A 10 de Março de 1520, o papa anula o contrato; Michelangelo sente com isto a mais dolorosa humilhação. As fadigas, os ferimentos do orgulho e as preocupações não serviriam para nada. Foi em vão que elaborou os projetos. A fachada de San Lorenzo nunca será construída.

O assunto das indulgências está longe de se resolver e o que Leão X julgou ser a princípio uma querela de monges tornou-se um problema de primeira importância. Trata-se de nada menos que um verdadeiro conflito entre Lutero e o Vaticano. A 3 de Janeiro de 1521, Leão X excomungava Lutero. Ao morrer onze meses mais tarde, a situação não melhora.

Sucede-lhe Adriano VI, um flamengo vindo de Utreque que nada tem de apreciador de arte e ainda menos de mecenas. Se escandaliza com os nus da Sistina, dedica-se à tarefa de tentar reformar o clero e os seus costumes, mas reina apenas por um ano, deixando ao morrer o trono pontifical a outro Médicis, que toma o nome de Clemente VII. Sobrinho de Lourenço, o Magnífico, este é filho natural de Júlio de Médicis.

Clemente VII, por sua vez, usará também e abusará da sua força. Começa por interromper a execução do túmulo de Júlio II. Michelangelo tem igualmente de abandonar um trabalho que começou: um Cristo que lhe encomendara Metello Vari e que os seus alunos Pietro Urbano e Frederigo Frizzi se encarregarão de terminar. O contrato assinado entre Metello e Michelangelo, datado de 1514, especifica que se tratará "de uma figura de mármore de um Cristo em tamanho natural, nu, em pé, com uma cruz nos braços, na pose que Michelangelo julgasse conveniente".

Enquanto Michelangelo se isola na sua oficina de escultor, Clemente VII, continuando assim a política artística de Leão X, encarrega Rafael de encomendas e cumula-o de honras. Depois de ter sofrido com os êxitos do rival que via em Leonardo da Vinci, Michelangelo vê agora oporem-lhe o jovem Rafael, que triunfa no Vaticano.

A Sagrestia Vecchia da igreja inacabada de San Lorenzo conta-se entre as mais puras realizações da Renascença e dos mais felizes êxitos de Brunelleschi. Abriga as obras de Donatello e de Verrocchio. Uma capela também inacabada serve-lhe de par, e é essa que Clemente VII escolhe para colocar o túmulo dos Médicis.

Michelangelo apresenta ao papa uma série de projetos; o primeiro tem como ponto comum com um dos que tinha executado a princípio para o túmulo de Júlio II o ser uma construção autônoma colocada no centro do edifício. Na realização final, os túmulos, concebidos como fachadas, integrar-se-ão na capela mais do que se adossarão às paredes.

Cansado e doente, Michelangelo parece prestes a abandonar o trabalho. Considera-se culpado em relação a Júlio II e em relação aos seus herdeiros, pois faltou à sua palavra e o monumento não corresponde ao que eles esperavam. Por fim um projeto definitivo é apresentado a Clemente VII e aceite por este em Janeiro de 1521. Mas só em 1524 é que os trabalhos começam, pois foi preciso esperar a chegada dos blocos de mármore provenientes de Carrara.

Quando se penetra na Capela dos Médicis, uma intensa impressão de recolhimento emana do conjunto. As estátuas parecem dotadas de uma vida própria absolutamente misteriosa que nos parece estranha e que nenhum comentário, nenhum estudo, saberiam distrair desse longo diálogo com o Invisível que parece ter começado. O grande poema da morte inscreve-se na brancura cristalina de onde surgem as inesquecíveis figuras de Lourenço e de Juliano de Médicis, enquadradas por outras não menos extraordinárias das quatro fases da vida: a Aurora, o Crepúsculo, o Dia e a Noite.

A Aurora, o Crepúsculo, o Dia e a Noite são as alegorias do Tempo implacável que submete o homem ao seu destino e contra o qual toda a rebelião é inútil e impossível. Finalmente, as estátuas de Lourenço e Juliano dirigem o olhar para o centro desta vasta composição: a Virgem e o Menino. A vontade dinâmica de Michelangelo aplicou-se não só ao mundo das estátuas, mas também ao espaço em que as colocou.

Por cima das figuras alegóricas o Tempo erguem-se, fixadas no seu destino e na sua eternidade de pedra, as estátuas de Lourenço de Médicis, duque de Urbino, e de Juliano de Médicis, duque de Nemours. As estátuas integram-se no programa iconográfico de Michelangelo, concebido segundo uma tragédia clássica em que ele respeita as regras mais estritas, até a da unidade no tempo, pois a presença das alegorias permite-nos afirmar que a regra das vinte e quatro horas é igualmente seguida.

Quando observaram ao escultor que as imagens que ele dera de Lourenço e de Juliano se pareciam pouco – para não dizer nada – com os seus verdadeiros rostos, este respondeu com altivez: "daqui a dez séculos quem é que dará por isso?" Apesar das suas angústias e inquietações, é evidente que Michelangelo tinha plena consiência do seu gênio e do valor da sua obra.

Depois do saque de Roma, a revolução de 1523 vai expulsar os Médicis de Florença. O regime republicano novamente instaurado vai durar três anos. Será a última República de Florença.

Michelangelo é escolhido pelo gonfaloneiro Niccolo Capponi para participar nos trabalhos do Governo revolucionário provisório. A atmosfera que reina sobre a cidade lembra estranhamente a dos dias sombrios do reino de Savonarola, de quem Capponi foi um fiel partidário. Mas Capponi não fica muito tempo no poder. É substituído por Carducci, que imediatamente nomeia Michelangelo chefe das fortificações, explorando assim com habilidade o patriotismo do artista, os seus talentos de arquiteto, e o homem de ação que nele viu.

Michelangelo começa logo com os trabalhos: levanta muralhas, edifica baluartes, fazendo deitar a baixo ruas inteiras, que serão substituídas pela muralha fortificada que há-de salvar a cidade dos ataques inimigos. Vai de Florença a Pisa, a Liorne, a Arezzo e a Cortona, todas elas cidades dependentes da República Florentina. Estabelece planos e orienta os operários. Incansável, vê realizarem-se pelo menos uma vez rapidamente os projetos que cria. Vê materializarem-se na pedra alguns dos seus sonhos.

Politicamente Florença está cada vez mais isolada. Malatesta Baglioni tomou a chefia do exército florentino. Homem hábil, sem escrúpulos, explora as querelas interiores e alimenta-as para melhor assegurar a sua autoridade. Prestes a trair, apenas vê um obstáculo para os seus funestos projetos: a presença clarividente de Michelangelo. É dada ordem de o assassinarem. Prevenido, este é obrigado a fugir. Ei-lo uma vez mais galopando pelas estradas acompanhado por três amigos: Rinaldo Corsini, Giovan Baldassare e Antonio Mini. Acolhe-o uma cidade: Veneza.

O Outono torna mais dolorosa a sua melancólica nostalgia. A tristeza invade-lhe a alma. No mês de Novembro não aguenta mais. Regressa a Florença. A cidade continua a resistir aos assaltantes, ao abrigo das suas muralhas. Mas os homens de armas do príncipe de Orange aproximam-se perigosamente. Michelangelo recomeça a trabalhar na sua tarefa de arquiteto das fortificações. Troam os canhões. No dia 12 de Agosto de 1530 as portas da cidade abrem-se ao inimigo: Baglioni traiu. Os Médicis vão reconquistar o poder. Para Michelangelo a paz significa o retorno aos seus utensílios abandonados, o escopro e o martelo, o regresso aos blocos de mármore que esperam na luz da oficina. Vai recomeçar a trabalhar na Capela dos Médicis.

Ao mesmo tempo que esculpe o seu David-Apolo, executa para o duque de Ferrara Leda e o Cisne, mas o dá em seguida a Antonio Mini, seu aluno e amigo.

Clemente VII morre a 25 de Dezembro de 1534. Michelangelo perde o seu defensor. Quantas vezes não tinha o papa intervido em seu favor, muito em especial junto ao duque Alexandre, seu sobrinho, que detestava o artista e facilmente o teria mandado assassinar. Renuncia a fazer do túmulo dos Médicis a obra-prima que tinha imaginado. De renúncia em renúncia, de decepção em decepção, a vida passa, poupando contudo essas praias lisas e doces que são os instantes de felicidade.

Michelangelo conhece a ameaça que pesa sobre Florença, e quando deixa a cidade, é uma partida definitiva. Não voltará mais. Não mais verá os jogos cinzentos e azuis, infinitos, do céu e das nuvens refletidas pelo Arno. A 23 de setembro chega a Roma.

O Vaticano não tardará a mandar chamar Michelangelo. Clemente VII acaba de morrer. Sucede-lhe Alexandre Farnese, eleito papa por unanimidade de sufrágios sob o nome de Paulo III. Michelangelo terá agora de consagrar os seus esforços à grandeza dos Farnese.

A cúpula da Capela Sistina assistira ao nascimento do homem e do Universo, a parede assistirá à sua ruína suprema. Michelangelo terá de conceber e pintar o Juízo Final, que testemunhará perante o mundo o poder de Deus precipitando as criaturas num turbilhão impossível.

O afresco do Juízo Final, para o qual Michelangelo amontoa esboços e desenhos, constitui o coração do seu sonho. Nessa tragédia desenrola-se o combate mais feroz que Deus e os homens conheceram e que ele precipita na sua noite.

Michelangelo começa a pintar o afresco do Juízo Final em 1536. Ei-lo diante da parede vazia e nua, sob o olhar dos gigantes com que povoou o teto por cima de si. Volta aos andaimes. Volta aos pincéis e à cor, se todavia se pode dar esse nome brilhante às tintas baças e lívidas que ele utiliza. Nunca esqueceu o seu desprezo pela pintura de paisagens, e esse desprezo traduz-se na sua obra por uma ausência total.

Do afresco do Juízo Final emana um pessimismo que não encontramos anteriormente na obra de Michelangelo. Foi terminado no dia 31 de Outubro de 1541. Assim que se tornou acessível ao público, artistas não só italianos mas também estrangeiros afluíram à Capela Sistina a fim de estudar e copiar os nus pintados por Michelangelo.

Cerca de 1536, Michelangelo conhece em Roma uma mulher ainda jovem, de traços regulares e bastante bela, cujo espírito é célebre e brilha num círculo de amigos letrados e artistas, que ela gosta de reunir à sua volta. Vittoria Colonna, casada aos 17 anos com Ferrante Francesco d’Avalos, marquês de Pescara, é viúva desde os 35. Consagrou-se à poesia, pela qual sempre tinha sentido certa inclinação, e à religião, chegando mesmo a encarar a hipótese de se retirar para um convento.

Logo desde o primeiro encontro, as suas conversas elevam-se ao alto nível dos seus espíritos e das suas almas. A religião encontra-se no âmago das suas preocupações comuns, e é através dela que se ligam os laços desta amizade.

O seu encontro com Vittoria Colonna vai igualmente precipitar em Michelangelo a inspiração poética. Dedica-lhe desenhos e também sonetos em que traduz os sentimentos puros e apaixonados que ela provoca:

... Assim possa eu dar-nos a ambos longa vida,

como me convier, pela cor ou pela forma,

fixando os nossos rostos,

a fim de que mil anos depois da nossa partida derradeira

se saiba como sois bela e que miséria

era a minha, e quantas razões eu tinha para vos amar.

Quando se conhece a natureza profunda de Michelangelo em toda a sua ambiguidade, a sua preferência pelos jovens e especialmente o seu amor por Tommaso Cavalieri, não é de se espantar que os sentimentos que nutria por Vittoria colonna tenham permanecido perfeitamente platônicos, apesar do seu caráter apaixonado. Enquanto envia estes versos a Vittoria:

... Encontrando pois em ti que falas para mim

a graça que dispensas às minhas penas,

dessa graça te agradeço neste escrito...

é a Tommaso Cavalieri que escreve, descrevendo-se a si mesmo:

Com um coração de enxofre, uma carne de estopa,

Ossos semelhantes a madeira seca,

Uma alma sem guias e sem freio,

Um desejo vivo de mais, e demasiada paixão...

ou então isto, que revela a profundidade da sua paixão:

Se uma só alma em dois corpos se faz eterna,

Erguendo-os ao céu num mesmo vôo,

Se o amor consome e separa a carne de dois peitos

Com o mesmo golpe e o mesmo traço doirado,



Se se amam um ao outro sem nenhum deles se amar,

Com um só gosto, uma mesma delícia de tal modo

Que tendem ambos para o mesmo fim,



Se mil e mil amores não são a centésima parte

De um tal estado de amor e de uma tão grande fé,

Chegará um despeito para os romper e separar?



Oh! Feliz dia se esta esperança for certa!

Que parem num momento o tempo e suas horas,

O dia e o sol no seu antigo percurso...

Para Vittoria Colonna, como para Tommaso Cavalieri, Michelangelo desenha, escreve e pinta. Quando Vittoria morreu, Michelangelo estava perto dela. Não procura dissimular o desgosto que sente e que o dilacera. Põe todas as suas esperanças na sobrevivência da alma:

... Mas hoje, que a morte se não envaideça como faz com os outros,

Por ter extinguido este sol dos sóis,

Porque ela foi vencida pelo amor que a faz reviver

Na terra e nos céus entre os outros santos ...

Paulo III pedira a Michelangelo para executar dois afrescos: a Conversão de São Paulo e a Crucificação de São Pedro. Qualquer deles não precisará de menos de três anos de trabalho. Desta vez Michelangelo reencontrou o encanto das cores. Nada há de tenra frescura destes verdes que possa lembrar as harmonias escuras do Juízo Final.

Michelangelo tinha quase 75 anos quando acabou estes afrescos. Das últimas obras que pintou estas serão as mais importantes. Tendo terminado a decoração da Capela Paolina, começa a trabalhar num cartão representando a Epifania.

O seu isolamento ao mesmo tempo ganha uma auréola de misticismo. Todos os seus amigos desapareceram. Viu onze papas reinarem e morrerem uns após outros. Confia o seu desgosto a seu irmão Leonardo, numa carta datada de 4 de Dezembro de 1555: "Informo-te de que ontem à noite, 3 de Dezembro, às 4 horas, Francesco, conhecido por Urbino, morreu, para meu grande desgosto. Isso deixou-me tão aflito e perturbado que, por causa do amor que lhe tinha, ter-me-ia sido mais doce morrer com ele. Não merecia menos. Tinha-se tornado um homem de valor, cheio de fé e de lealdade. Desde que morreu, parece-me que estou sem vida; não consigo encontrar paz".

A 1 de Janeiro de 1547, Michelangelo é nomeado arquiteto de São Pedro. Sucede Bramante, Rafael, Fra Giocondo, Sangallo e Peruzzi, e subitamente transforma-se de novo na sua função de artista. Do escultor, Júlio II fizera um pintor. Do escultor e do pintor, Paulo III fazia um arquiteto.

Michelangelo não chegaria a ver o seu projeto realizado porque viria a morrer em 1564, e os seus planos, prosseguidos por Giacomo della Porta, só foram executados entre 1588 e 1590.

Michelangelo tem agora 89 anos, mas não pensa nunca em descansar, em considerar a sua obra como acabada e definitiva. Não cessa nunca de transformar-se. Começa uma outra Pietá, que será conhecida por Rondanini. Será a sua última obra e trabalhará nela até à véspera da sua morte, não se resignando a abandonar os instrumentos e o mármore, que encerra as formas imprevisíveis que durante toda a vida tentou libertar da sua prisão cristalina.

Instalado na sua oficina, rodeado pelos mármores e as maquetas, o velho artista entrega-se à morte:

Eis que o fim da minha vida chegou

Por mar tempestuoso e em barca frágil

Ao porto comum onde temos que desembarcar

Para dar contas e razões da obra de bem e de mal ...

A febre enche-o de arrepios. Está rodeado pelos amigos, que o vigiam e assistem: Daniele de Volterra, Leone Leoni e sobretudo, querido entre todos pela sua fiel presença, Tommaso Cavalieri.

A 18 de fevereiro de 1564, às 5 horas da tarde, Michelangelo morre. Pouco depois, a Vitória que Michelangelo esculpira para o túmulo de Júlio II foi posta sobre o seu túmulo, em Florença, como testemunho do seu gênio.

Aos 77 anos, recriminou um compatriota por endereçar carta "Ao escultor Miguel Ângelo"; disse que era conhecido unicamente como Miguel Ângelo Buonarroti e que não era pintor ou escultor no sentido de ter uma loja.

"... Embora tenha servido aos papas; mas fiz isso sob compulsão."

Pesquisa de Francinaldo A. dos Santos.



Quadro cronológico de obras

1475 – nasceu em Caprese no dia 6 de março.

1478 – conspiração dos Pazzi contra os Médici.

1481 – falece sua mãe.

1483 – nascem Rafael, Ralelais e Lutero.

1488 – no dia 1º de março, em Florença, entrou como aprendiz na oficina do pintor Domenico Ghirlandajo.

1489 – entrou na escola de escultura de Bertoldo.

1490 – saiu da oficina de Ghirlandajo.

1492 – aos 17 anos, esculpiu A Batalha Dos Centauros.

1494 – Faleceu Ghirlandajo; mudou-se de Florença para Bolonha; esculpiu "Kneeling", São Próculo e São Petrônio; retornou a Florença.

1496 – em 25 de junho, mudou-se para Roma.

1497 – esculpiu Baco.

1499 – esculpiu Pietá.

1501 – retornou a Florença; esculpiu Madona de Bruges; iniciou as esculturas Davi, São Mateus e o conjunto São Pedro e São Paulo.

1504 – participou em uma competição, contra Leonardo Da Vinci, de murais contando a história de Florença, patrocinada pela cidade – ambos não prosseguiram devido aos compromissos; pintou Doni Tondo; concluiu Davi e o conjunto São Pedro e São Paulo.

1505 – esculpiu o relevo Pitti Madonna; em março, retorna à Roma para a confecção, em mármore, do túmulo do Papa Julius II.

1506 – esculpiu o alto relevo Taddei Madonna; concluiu São Mateus; no dia 17 de abril, retorna à Florença, decepcionado com o Papa Julios II pelo interrompimento do túmulo; em novembro, foi contratado para fazer uma estátua de bronze do Papa Julius.

1508 – foi contratado, a contragosto, pelo Papa Julius para realizar um gigantesco afresco no teto da Capela Sistina e aceitou para provar a todos do que era capaz.

1512 – em setembro, os Médici retomam o poder em Florença; em outubro, conclui a magnífica obra na Capela Sistina e retorna aos seus blocos de mármore.

1513 – com o falecimento do papa Julios II, viu-se obrigado a trabalhar novamente em seu túmulo e iniciou as esculturas Escravo Agonizante, Escravo Rebelde e Moisés.

1515 – concluiu Moisés.

1516 – concluiu Escravo Agonizante e Escravo Rebelde, assim concluindo o túmulo do Papa Julius II; foi contratado pelo Papa Leo X, Giovanni de’Medici, para construir a fachada de San Lorenzo, em Florença.

1519 – faleceu Leonardo Da Vinci; esculpiu Jesus Cristo.

1520 – faleceu Rafael; iniciou sua obra escultórica e arquitetônica Túmulo de Giuliano de’Medici, Duque de Nemours e Túmulo de Lorenzo de’Medici, Duque de Urbino.

1521 – esculpiu Madona e a Criança.

1524 – esculpiu Crouching Boy.

1526 – esculpiu Apolo.

1527 – com o saque de Roma pelas tropas imperiais, instalou-se em Florença; Os Medici caem em Florença.

1530 – as tropas imperiais e papais capturam Florença e promovem a restauração do poder dos Medici; pintou Leda and the Swan.

1531 – esculpiu Atlas e Captives.

1533 – desenhou The Fall of Phaeton e esculpiu A Vitória.

1534 – conclui os conjuntos Túmulo de Giuliano de’Medici e Túmulo de Lorenzo de’Medici; ao falecer seu pai, instala-se definitivamente em Roma.

1535 – é nomeado, pelo Papa Paulo III, chefe dos trabalhos arquitetônicos, escultóricos e pictóricos do Palácio do Vaticano.

1536 – iniciou o afresco Julgamento Final, agora na parede frontal interna da Capela Sistina.

1538 – publicação dos poemas de Vittoria Colonna.

1541 – concluiu o Julgamento Final.

1542 – esculpiu ‘Raquel e Léia’ e ‘Brutus’; iniciou afrescos na capela Paolina; o Papa Paulo IV restaura a Inquisição.

1545 – concluiu a pintura Conversão de São Paulo; foi acusado de imoral por Aretino.

1546 – iniciou a pintura Crucificação de São Pedro; morre Lutero e inicia-se a Contra-reforma.

1547 – é apontado como chefe arquitetônico de São Pedro; morrem Vitorria Colonna e Sebastiano del Piombo.

1550 – concluiu os afrescos da Capela Paolina e a Crucificação de São Pedro; iniciou a Deposição de Florença; a partir daqui, aos 75 anos, passou a dedicar-se, em primeiro plano, à arquitetura.

1551 – escreveu uma coletânea de rimas e, em março, Vasari escreveu "A Vida De Michelangelo".

1552 – recriminou carta endereçada "Ao escultor Miguel Ângelo".

1553 – em julho, Condivi publicou "Biografia de Michelangelo".

1555 – iniciou a escultura ‘Rondanini Pietá’ onde trabalhou até data da sua morte; concluiu a Deposição de Florença.

1558 – fez seu modelo para a cúpula de São Pedro.

1564 – faleceu no dia 18 de Fevereiro em Roma; nasce Shakeaspire.



Bibliografia

AGONIA E ÊXTASE (The Agony and the Ecstasy); drama inglês; dirigido por Carol Reed e Charlton Heston, como Michelangelo, e Rex Harrison, como Papa Julius II. 120 minutos, colorido, 1965.
ARBOUR, Renée; Miguel Ângelo. São Paulo, Verbo, 1999.
BENTON, William; Enciclopédia Barça.1967.
ENCICLOPÉDIA Ilustrada de Pesquisa Conhecer 2000; São Paulo, Nova Cultural, 1995. Fascículo 40: Artes 1ª parte e 2ª parte.
GOLDSCHEIDER, L.; The World of Michelangelo. 1960.
GOLDSCHEIDER, L.; The Paintings of Michelangelo. 1963.
GOMBRICH, E. H.; A História da Arte. Rio de Janeiro, Guanabara, 4ª edição, 1989.
MARTINDALE, Andrew; O Mundo da Arte. Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações LTDA; Coleção O Mundo da Arte – Enciclopédia das Artes Plásticas em Todos os Tempos. 10 volumes.
PROENÇA, Graça; História da Arte. São Paulo, Editora Ática, 1999. 14ª edição.
TENENTI, Alberto. Florença na Época dos Médici: da Cidade ao Estado.

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